Luta pela identidade islâmica 'emerge' do Hamas em Gaza



Guardiães da moral religiosa tentam impor suas opiniões à população.Governo do território consegue detê-los. Mas até quando?


Garoto palestino observa membro das forças de segurança do Hamas que monta guarda em frente a mesquita durante o Ramadã, na Cidade de Gaza, no último dia 4. (Foto: AFP)

Taghreed El-Khodary e Ethan Bronner Do New York Times, em Gaza e em Jerusalém


Uma verdadeira luta está emergindo do movimento do Hamas, que domina esta faixa costeira da Palestina, e que diz respeito à extensão e à natureza de sua identidade islamista. Guardiões da moral religiosa, alguns autoindicados, outros de dentro do governo, têm buscado impor suas opiniões nos últimos meses.Até o momento, oficiais de alto escalão do governo os pararam, mas ainda não está claro por quanto tempo mais eles conseguirão.São muitos os exemplos da batalha. O mais ameaçador ocorreu em meados de agosto, quando um grupo extremista, os Guerreiros de Deus, tomou à força uma mesquita na cidade de Rafah, ao sul, chamando o Hamas de impuro e colaboracionista. Eles declararam leis religiosas severas.
As forças do Hamas cercaram a mesquita e, após um conflito violento que durou a noite inteira, mataram mais de vinte pessoas, incluindo o líder do grupo, e prenderam outras 155, segundo representantes do Hamas. O Ministério do Interior está agora monitorando mesquitas e patrocinando palestras públicas contra o extremismo muçulmano. Outros casos não envolveram violência, mas muita coerção. O presidente da suprema corte decretou, este verão, que advogadas do sexo feminino deveriam usar a hijab (véu que cobre a cabeça) no tribunal. Um comitê organizado pelo ministério de assuntos religiosos enviou homens para as praias a fim de instruir aos banhistas que não toquem uns aos outros em público e cubram o corpo. Várias professoras e diretoras de escolas para meninas mandaram as alunas se vestirem com longos casacos e usarem a hijab, em vez das saias jeans dos últimos anos. Todas essas regras já foram revertidas. O primeiro-ministro Ismail Haniya pediu que o presidente da suprema corte, Abed al-Raouf Halabi, cancelasse sua ordem envolvendo as advogadas, e ele obedeceu. O ministro da educação, Mohammed Asqoul, disse que qualquer exigência nova em relação ao uniforme escolar era "um ato individual". "O governo e o Hamas não têm nada a ver com isso", disse ele. "Sou contra esse tipo de ordem, já que não há necessidade de impor a hijab numa sociedade conservadora". Khalil al-Hayya, experiente líder político do Hamas, disse: "Nem o governo nem o Hamas chegaram a decisão alguma sobre essas ordens. Somos um movimento de resistência islâmica que nunca vai obrigar ninguém a ir contra sua vontade. O conselho é a melhor tática". O doutor Iyad el-Serraj, psiquiatra e observador local, disse haver poucas dúvidas de que Gaza, há muito tempo um lugar conservador do ponto de vista religioso e social, estava cada vez mais conservador. Sem instrução partindo de cima, a grande maioria das mulheres usam vestes religiosamente modestas, e cada vez mais homens usam barba. Não se vende bebida alcoólica aqui. Serraj atribui a mudança a vários fatores, além do fato de que essa expressão de identidade é cada vez mais comum pelo Oriente Médio muçulmano. O Hamas, observou ele, está no poder há mais de dois anos. Aqueles em posições de nível intermediário de poder, assim como aqueles que aspiram a esses postos, querem ser notados e promovidos. Em segundo lugar, disse o psiquiatra, com a economia completamente enguiçada devido ao bloqueio de Gaza por parte de Israel, há pouca coisa a fazer e um horizonte limitado para avanços e desenvolvimento. Nessas circunstâncias, sugeriu ele, o fundamentalismo encontra um terreno fértil. Porém, o Hamas, apesar de favorecer a lei e o comportamento islâmico, tem muitas razões para recuar. Seu rival, a Autoridade Palestina na Cisjordânia, liderada pelo Fatah, usa qualquer indício de imposição de leis religiosas como evidência de que o Hamas não é capaz de administrar um governo moderno e responsável. O Hamas é rotulado como uma organização terrorista pelos Estados Unidos, União Europeia e Israel, e está buscando legitimidade para ser líder do movimento palestino. O Hamas rejeita o direito de Israel de existir e permanece doutrinariamente comprometido com sua destruição. No entanto, seus líderes afirmaram diversas vezes que, se Israel deixasse todas as terras tomadas na guerra de 1967, o Hamas poderia aceitar um estado palestino limitado à Cisjordânia, Gaza e leste de Jerusalém, dependendo dos termos de um cessar-fogo. Um líder linha-dura em Gaza disse que o Hamas está se iludindo se pensa que a moderação pode levar a uma aceitação internacional. "O mundo nunca vai nos reconhecer e nunca terminará o estado de sítio", disse ele, sob condição de anonimato. Ele acrescentou que talvez a imposição de leis religiosas "os assuste e os force a acabar com o estado de sítio". Para o pequeno número de palestinos relativamente laicos em Gaza, o crescente movimento em direção a uma vida mais islâmica é profundamente preocupante. Ahmed Shawa, de 18 anos, contou que, quando pediu a amigos uma massagem nas costas na praia, um homem usando roupas civis interveio. Ele disse que não poderia haver toques entre os jovens e instruiu Shawa a colocar uma camisa. Quando ele e os amigos pediram uma explicação, o homem disse: "A forma como vocês se portam é satânica. Vocês convidam o diabo a brincar nas suas mentes". Shawa, que joga basquete, também contou que recentemente estava indo para casa a pé, vindo do estádio, quando foi parado por um homem usando roupas no estilo palestino. O homem mandou que ele não usasse shorts ou camisetas sem manga. Quando Shawa argumentou, o homem o ameaçou, dizendo: "Da próxima vez, vou usar o outro método". O comitê da moral, que envia esses homens pelas ruas, é contra a mistura dos sexos, contra o uso de roupas "femininas" por homens e contra a venda de cartazes, livros, revistas e DVDs que violam leis morais severas. Os homens visitam cafés, pedindo que os donos não sirvam às mulheres a shisha tradicional, usada para o fumo na região. No início do ano letivo, no final de agosto, várias garotas do ensino médio foram mandadas para casa para cobrir suas cabeças e usar o pano conhecido como jilbab. Nas áreas mais abastadas da Cidade de Gaza, muitos ficaram insatisfeitos. "É a primeira vez, em toda a minha vida, que cubro meu cabelo e uso uma jilbab. Me sinto sufocada", disse Domoua al-Ali, 16 anos. Assim que ela saiu da escola, Domoua e sua amiga, Dinah Nasrallah, 17 anos, abriram os botões da jilbab e orgulhosamente exibiram seus jeans apertados, depois transformaram a hijab num lenço de pescoço. Elas zombavam da professora de religião, que explicou a ordem desta forma: "É Deus quem pede hijab, não a diretora. Como vamos proibir o que Ele pediu?" Do lado de fora da escola Ahmed Shawqi, outro círculo de garotas era liderado por Aziza Doghmosh, 16 anos. Ela também tirou a hijab assim que saiu da escola e reclamou da professora. "Minha professora disse que quando usamos uma saia ou blusa apertada, o diabo brinca na mente dos homens", disse ela. As amigas riam. Apenas 20 garotas, entre as mais de 800, não obedeceram ao novo código de vestimenta na primeira semana de aulas, mas o número aumentou na segunda semana. No entanto, na parte leste da Cidade de Gaza, mais conservadora e menos abastada, todos obedeceram, mesmo depois que a regra foi oficialmente cancelada.


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